sábado, 8 de setembro de 2007

Uma Nova Bomba na Batalha do Homem


Mistério-Bufo é a nossa grande revolução, condensada em versos e em ação teatral. Mistério: aquilo que há de grande na revolução. Bufo: aquilo que há nela de ridículo. Os versos de Mistério-Bufo são as epígrafes dos comícios, a gritaria das ruas, a linguagem dos jornais. A ação de Mistério-Bufo é o movimento da massa, o conflito das classes, a luta das idéias: miniaturas do mundo entre as paredes do circo. [1]

Maiakóvski

A Revolução de Outubro completará este ano seus 90 anos. Ela foi o maior feito do proletário mundial, que colocou o poder nas mãos dos Soviets [2] e dirigiu as massas para expropriação da burguesia. Os primeiros anos do Estado Operário foram árduos, para todos os trabalhadores russos e para os camponeses, em um país onde a indústria ainda era insipientemente desenvolvida manter uma revolução que significava uma ruptura na lógica do mundo capitalista não poderia fazer-se com rapidez. Neste período, muitos artistas deixaram a Rússia. Eram eles, em sua maioria, poetas do prozaico que agora era outro, tornando seus temas de inspiração alienados ao momento presente. Esta fuga pode ser explicada pela incapacidade de se perpetuar a arte não-revolucionária e burguesa na nova União Soviética. Como retratar um mundo de conforto e prestígio social em meio a maior transformação vista desde a Revolução Francesa de 1789?

Se por um lado esses falsos artistas fugiram da realidade, e ao fazê-lo definharam ainda mais sua arte, forjou-se uma série de artistas russos, escritores, artistas plásticos, cineastas, que se fizeram parte do que começava a desenvolver-se, sendo sensíveis e parte de tudo que se modificava em sua época. Dentre estes artistas e movimentos que emergiram durante os primeiros anos do Estado Operário se destacam os Cubos-futuristas [3]. A vanguarda Cubo-futurista pôde traduzir, em textos e imagens, não somente os acontecimentos de outubro, mas também compreender o que arrastava para futuro a subjetividade candente da época, como poderia fazer-se essa nova sociedade.

Se o Cubo-futurismo foi umas das escolas artísticas mais ligadas a sua época dentre estes o poeta Maiakóvski foi uma de suas maiores expressões. Embora seja mais conhecido por sua poesia, o autor escreveu três peças de teatro dentre elas Mistério-Bufo. A peça é a segunda escrita pelo autor, finalizada em 1918 para a comemoração do primeiro aniversário da Revolução Russa de Outubro. A peça começa a ser escrita antes de 1917, porém, marcada pelo desenvolvimento da revolução na Rússia, é finalizada às pressas no ano seguinte.

Mistério-Bufo é um retrato heróico, épico e satírico de nossa época, nas palavras do próprio autor. Os personagens essenciais da trama dividem-se entre puros e impuros. Os puros são burgueses e aristocratas, os impuros o proletariado e as classes subalternas. Satirizando o significado do dilúvio na Bíblia, os aristocratas aparecem como Noé e sua família, aqueles escolhidos por Deus para serem salvos; em Maiakóvski os puros representam a burguesia e a aristocracia de diversos países e longe de serem predestinados a serem salvos por suas qualidades individuais, esta pureza é uma ironia de seu desprezo pela classe operária e todo o povo. Quando ocorre o dilúvio os ditos puros ficam completamente desorientados. O autor usa o humor para retratar os Puros como uma classe complemente inábil e nada prática, que apenas sabem inventar leis e nada mais. Durante a trajetória a arca é construída, para escaparem do dilúvio. Maiakóvski irá alegoricamente mostrar o movimento histórico da burguesia, não apenas na Rússia mas na Europa. A medida que os personagens puros vêem a necessidade de estabelecer uma ordem dentro da arca, elegem como soberano um dos puros [Negus], porém ao ver que são desfavorecidos em nome do soberano decidem se tornar republicanos e matá-lo. Nesta passagem há uma brincadeira com as revoluções burguesas, quando os impuros chegam para ver as leis que estavam sendo elaboradas e participarem, os puros respondem que nada eles tinham a fazer ali. Os impuros passam apenas a trabalhar para os puros, inclusive terem direito a comida, daí a frase dita não pelo burguês Francês:

Para uns a rosca para,

Para outros o buraco dela.

A República Democrática

É por aí que se revela.

Serão três as partes fundamentais da obra, a revolução dos impuros que lança ao mar os puros, passando depois por momentos difíceis de fome e desespero, retrato dos árduos anos da Revolução logo após o ano 1917. A terceira parte da peça é o momento que surge o Homem Simplesmente, personagem que parece em meio a todo este desespero, mais uma brincadeira do autor com as imagens bíblicas. O Homem Simplesmente chega andando sobre as águas como Cristo, porém seu sermão. Cristo diz vinde a mim os pobres de espírito, pois é deles o reino do céu, o Homem Simplesmente, fala justamente o contrario: meu paraíso não é para os pobres de espírito, e apresenta um paraíso onde o homem pode se realizar como humano pleno que possui consciência de si e prazer em viver, não o paraíso dos religiosos onde prima as privações. Ele é na verdade o signo do seria a ideologia comunista, fazendo com que os impuro não desistam da jornada mesmo que árdua para a realização completa da Revolução.

É importante notar na peça o seu correlato com a Revolução e o comunismo, e de como Maiakóvski irá diferir-se por completo das peças panfletárias de exaltação à ela e a classe operária, a apresentando como a última reserva moral da humanidade através das alegóricas situações no sense. É capaz de apresentar os dramas que envolveram a Revolução Russa e certamente outras revoluções, como a fome dos impuros e de como estes também não são necessariamente homens sagrados e bons, mas pelo contrário, são fruto da brutalização do capitalismo.

Maiakóvski foi o mais realista do novo Estado Operário, ao contrário da corrente artística que se forjaria depois a mando de Stalin, o Realismo Socialista. Esta tendência sempre apresentava a classe operária como vitoriosa e altiva tanto em suas peças como em seus cartazes. Porém, diferente de Maiakóvski, o Realismo Socialista não queriam cantar a revolução para todos mas dizer que ela já havia sido feita, e restaria deixar o resto com eles, a burocracia de Stalin, que foi capaz de sufocar a democracia da classe operária, e ao fazer isso sufocou e levou a morte artistas como Maiakóvski.

Nos primeiros anos da Revolução a situação era diferente, apesar de todas a dificuldades enfrentadas,[4] houve uma explosão criativa que mereceria um texto a parte só para abordá-la. A expropriação da burguesia, as massas insurretas, a constituição do primeiro Estado operário do mundo, davam mais vida a artistas como Maiakóvski que sempre teve como objetivo deixar de ser poeta-revolucionário e passar a ser Homem Simplesmente. Viver numa sociedade onde arte e vida estão fundidas em uma só. Mas sabia ele que isso ainda não era possível, e por isso dizia que escrevia versos e não fatos... mas se falasse B este B era uma nova bomba na batalha do homem. Lênin, assim como Trotsky e outros dirigentes, soube ver que Mistério-Bufo era uma Bomba na batalha do homem e não à toa foi a peça selecionada para comemorar a primeiro ano da Revolução Russa. E hoje, 90 anos depois, ela se mantém Bomba em nossa batalha.



[1] Trecho retirado do programa da peça, redigido pelo autor para encenação em homenagem ao III Congresso do Partido Bolchevique, ocorrida no ano de 1921 em Moscou.

[2] Conselhos Operários.

[3] O Cubo-Futurismo foi uma vanguarda de artistas modernos que produziram durante as primeiras décadas do século XX na Rússia. Maikóvski foi um de seus fundadores nos primeiros anos da década de 1910, depois da massiva expulsão de artistas da Escola de Belas Artes. Após Outubro de 1917 o movimento aliou-se com o novo regime. Participaram escritores, cineastas, artistas plásticos entre outros.

[4] Lembrando que a Rússia era um dos países economicamente mais atrasado da Europa.